GRAÇA E SANTIFICAÇÃO
Rm 5:20-21; 6:1-7
Pr. Claiton Ivan Pommerening
Libertei mil escravos. Podia ter libertado outros mil se eles soubessem que eram escravos. Harriet Tubman
Para compreender o que é a graça é preciso antes entender o papel da lei, pois sem ela, a graça não teria sentido. “Que diremos então? A Lei é pecado? De maneira nenhuma! De fato, eu não saberia o que é pecado, a não ser por meio da Lei. Pois, na realidade, eu não saberia o que é cobiça, se a Lei não dissesse: "Não cobiçarás".” Rm 7.7. Qual então o papel da lei?
a) Propósito material – preservar Israel do pecado dos povos adjacentes.
b) Propósito espiritual – mostrar quão aviltante é o pecado. “pela lei vem o conhecimento do pecado.” Rm 3.20. E quão grande é a necessidade da graça para obter a salvação, pois é impossível cumpri-la.
c) Estamos sob a Lei Moral de Deus, no sentido de que ela continua representando a soma de nossos deveres e obrigações para com Deus e para com o nosso semelhante.
d) Estamos sob a Lei Moral de Deus, no sentido de que ela, resumida nos Dez Mandamentos, representa o caminho traçado por Deus no processo de santificação efetivado pelo Espírito Santo (João 14.15). Neste sentido o papel do Espírito Santo é ajudar a cumprir a lei. Nos dois últimos aspectos, a própria Lei Moral de Deus é uma expressão de sua graça, representando a revelação objetiva e proposicional de sua vontade.
Desta forma a lei serve como um condutor para o encontro com Cristo e sua graça. Visto qual o papel da lei, veremos o que é graça.
1. GRAÇA
No Antigo Testamento a palavra usada para graça é hen, que significa favor, inclinação; ou ainda rason, como favor. Entretanto algumas vezes esta palavra não é empregada, mas o contexto da história revela que houve manifestação da graça. Ex.: quando Davi pecou com Bate-Seba, morre o primeiro filho, entretanto o segundo torna-se rei de Israel, sobrepujando Davi em grandiosidade e riqueza.
No Novo Testamento[1] a palavra grega empregada é charis e normalmente significa dádiva, dom gratuito, graça. Jesus não utiliza o conceito de graça, entretanto seus atos estão saturados de momentos em que se manifesta a misericórdia de Deus para com os pecadores, os fracos, os pobres e os perdidos; suas palavras são cheias de ensino em que há perdão de dívidas incalculáveis, galardão precioso e propostas de vida nova.
Para Paulo, que abandonou uma religiosidade extrema, que consistia da conquista do favor de Deus por mérito pessoal e que abraçou o cristianismo, a graça é entendida como essencial à salvação, pois através da morte de Cristo, o pecador alcança favor incondicional de Deus, não necessitando de absolutamente nenhum esforço humano para alcançá-la, basta ter fé para a salvação. “E, se é pela graça, já não é mais pelas obras; se fosse, a graça já não seria graça.” Rm 11:6. Entretanto, esta mesma graça que salva não permite que o ser humano viva sob o domínio do pecado, naqueles que vivem em Cristo.
A graça é algo ao qual é impossível o seu recebedor retribuir, a única coisa que lhe cabe é agradecer[2], pois qualquer gesto de retribuição lhe tiraria a qualidade de favor imerecido, tornando-se assim um mérito. Como no relacionamento com Deus não existem méritos, pois somente Cristo tem méritos, é um ato de afronta contra o doador querer lhe retribuir.
O cristão quando entende a graça de Deus, necessariamente vai expressar esta mesma graça no relacionamento com outros Cristãos, ou seja, o recebimento da graça resultará em atos graciosos por parte do recebedor. Entretanto isto não é mérito, é simplesmente a reação graciosa de gratidão para com a graça recebida, mas vai além, ela se expressa como “presente para a comunidade, um benefício para o bem comum.”[3] Logo, podemos afirmar que cristãos que não reagem assim à graça provavelmente não a compreenderam ainda.
Os teólogos dizem que ela é “preveniente” (antecede a decisão e o esforço humanos), “eficaz” (o que Deus propõe e cumpre não falha), “irresistível” (o chamado é tal que o favorecido não consegue fazer-se de surdo) e “suficiente” (ela pode salvar perfeitamente os que se aproximam de Deus por meio de Cristo).[4]
2. GRAÇA E CULPA
Muitos cristãos tem sido aprisionados pela culpa e tem vivido em indignidade e não conseguido exercer com desenvoltura seu chamado no Reino de Deus, mas os que entendem o que é a graça vivem livres dela, pois ninguém poderá lhes acusar, nem mesmo sua própria consciência, pois está purificada graciosamente pela obra redentora de Cristo.
Antropologicamente o ser humano tem a necessidade de expiar sua culpa, dentro dele há um grito na alma que diz: “um preço precisa ser pago”, por isso muitos crentes não entendem a graça de Deus e acham que precisam ter méritos diante dele, pagando um preço pela sua salvação, assim, se criam esquemas humanos (legalismos, critérios, ordenanças, doutrinas, etc.) para tentar “acalmar” a ira de Deus sobre o homem criando-se situações meritórias, entretanto tudo já foi pago por Cristo, os méritos são dele e não do homem com seus esforços.
3. GRAÇA E SANTIFICAÇÃO
Os que vivem sob a liberdade da graça desenvolvem uma santidade que reflete a beleza de Cristo no homem interior, que extravasa nas mais diferentes esferas da vida humana. Neste sentido, santificação é a capacidade de ser coerente com as fraquezas humanas e reconhecê-las sempre diante de Cristo. Sendo assim, quanto mais transparente se é neste relacionamento com Ele, que não esconde nada, tanto mais possibilidades de santidade se adquire.
A santidade não pode ser entendia como algo absoluto e pronto, pois é um processo de aperfeiçoamento até que sejamos como Cristo. “Pois aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos.” (Rm 8:29). Entretanto esta imagem de Cristo se refere ao Cristo humano. A simples pretensão de querer ser como Deus infere no problema ocorrido com Adão e Eva no Jardim do Édem, pois o chamado para santidade não é o ser igual a Deus, mas assumir integralmente a humanidade, fugindo assim da hipocrisia.
Santo é aquele que no âmbito de suas limitadas, porém irrepetíveis características, qualidades e circunstâncias pessoais e dentro da vocação e da graça que Deus lhe deu, [...] se abre e corresponde à graça que lhe foi concedida e, conformando-se com Cristo, vive nele a forma de vida determinada que lhe foi dada.[5]
Ao não entender a graça (como algo que não depende de mim), posso resolver: (1) Pecar a vontade. Rm 6. Entretanto a desobediência fere a imagem de Deus em mim e no próximo e traz consequências; OU (2) Preciso criar alguma regra para aliviar a consciência, ao invés de confiar na obra completa de Cristo. Gl 3.1-5; Col 2.20-23; OU (3) Resolvo confiar inteiramente em Cristo que me perdoa, aceita e ama do jeito que sou. Porém este amor me constrange a obedecer. Neste sentido a religião me diz o que devo fazer (obedecer), Jesus me diz o que Ele já fez por mim (confiar).
Será que posso pecar indiscriminadamente? “Que diremos então? Continuaremos pecando para que a graça aumente? De maneira nenhuma! Nós, os que morremos para o pecado, como podemos continuar vivendo nele?” Rm 6:1-2.
Quando se ama alguém se faz de tudo para agradar esta pessoa, portanto, o amor de Cristo por nós nos “constrange” (2 Co 5:14) a fazermos coisas por ele que lhe são agradáveis e glorifiquem seu nome.
Deus quer a santificação dos seus filhos não por capricho divino, mas unicamente porque o pecado nos fere, e nosso Pai de amor não quer ver seus filhos feridos, pois isto contraria seu amor. Justamente para sarar a ferida do pecado em nós é que enviou seu filho e para nos manter afastado dos pecados (como feridas) é que exige nossa santificação.
Deus não está iludido a nosso respeito, nós é que estamos, pois as vezes achamos que podemos ser bons e santos. A oração do fariseu e do publicano.
A TRANSIÇÃO ENTRE A GRAÇA NO AT E NO NT
O Deus apresentado pelo AT é fruto de uma revelação progressiva dele ao homem e em muitos casos é mostrado como um ser bravio, irado e que exige méritos para abençoar.
“Assim, a Lei foi o nosso tutor até Cristo, para que fôssemos justificados pela fé. Agora, porém, tendo chegado a fé, já não estamos mais sob o controle do tutor.” Gl 3.24-25.
“A Lei e os Profetas vigoraram até João. Desse tempo em diante estão sendo pregadas as boas novas do Reino de Deus, e todos tentam forçar sua entrada nele.” Lc 16.16
“Vocês ouviram o que foi dito... mas eu lhes digo...” Mt 5.22,28,32,34,39,44.
“Chamando nova esta aliança, ele tornou antiquada a primeira; e o que se torna antiquado e envelhecido está a ponto de desaparecer.” Hb 8.13. “Agora, porém, o ministério que Jesus recebeu é superior ao deles, assim como também a aliança da qual ele é mediador é superior à antiga, sendo baseada em promessas superiores. Pois, se aquela primeira aliança fosse perfeita, não seria necessário procurar lugar para outra.” Hb 8.6-7
“Na verdade a mente deles se fechou, pois até hoje o mesmo véu permanece quando é lida a antiga aliança, não lhes sendo revelado que em Cristo é ele abolido.” 2 Co 3.14.
O Deus amoroso do NT: Mostra-nos o pai Jo 14:8
A graça manifesta em Caim, Abraão, Davi.
A samaritana (Jo 4), a pecadora que ungiu os pés (Lc 7), a adúltera quase apedrejada (Jo 8), o ladrão da cruz (Lc 23), Pedro, Judas.
[1] BROWN, Colin; COENEN, Lothar (orgs.). Dicionário internacional de teologia do NT. São Paulo, Vida Nova, 2000. p. 911.
[2] DUNN, James D. G. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003. p. 375-376.
[3] DUNN, 2003, p. 376.
[4] A graça não é de graça. Ultimato. Viçosa, Ultimato, ed. 318, mai/jun 2009.
[5] FIORES, Stefano; GOFFI, Tullo (orgs.). Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Paulus, 1993. p. 1035-1036.
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